Autorregulação por Jacqueline A. Carleton (Parte 1)
Autorregulação – Parte 1
Jacqueline A. Carleton, Ph.D.
Publicado originalmente em Energy & Consciousness, International Journal of Core Energetics, vol. 1, pp. 15–45, inverno de 1991.
© Institute of Core Energetics – ISSN 1050-5326
Nota editorial para leitura terapêutica
Nesta adaptação, substituímos termos acadêmicos por equivalentes usados em Core Energetics e Pathwork: núcleo (core self), energia vital (fluxo bioenergético), couraça (bloqueio/armadura) e autorregulação (capacidade orgânica de o organismo ajustar-se a partir do núcleo, sem coerção externa).
Introdução
Ao longo do século XX, pesquisadores começaram a mapear, de forma sistemática, os inúmeros fatores que moldam o vínculo entre adultos e crianças. Além das variações familiares, também investigaram experiências fora do lar, como a educação comunitária em kibutzim e formatos diversos de cuidado diurno.
Este artigo revisa uma proposta intencional de criação de filhos conhecida como autorregulação.
O nome mais difundido ligado a essa proposta é A. S. Neill, diretor da escola Summerhill na Inglaterra e autor do livro homônimo (1960). Desde a década de 1940, Neill e colaboradores publicaram artigos explicando, atualizando e ilustrando tais princípios em linguagem prática.
A essência da autorregulação consiste em responder às necessidades primárias do bebê e da criança, de modo que necessidades secundárias (defensivas e reativas) surjam o mínimo possível. Quando isso ocorre, o organismo funciona sem conflito interno ou resistência crônica (Raknes, 1970).
Princípios centrais
Barbara Koopman (Journal of Orgonomy) ressaltou a centralidade do funcionamento sexual saudável — na criança, traduzido em vitalidade corporal, curiosidade, prazer inocente e autoexploração adequada à idade. A partir dessa premissa, ela derivou algumas orientações: aceitar a vida sexual infantil em nível apropriado, estabelecer limites éticos claros, oferecer privacidade e não interferir sem necessidade, cultivar uma atitude adulta respeitosa, garantir cuidados básicos (amamentação sob demanda, alimentação escolhida pela própria criança dentro de opções nutritivas, desfralde conforme prontidão) e diferenciar contato amoroso de gratificação indiscriminada.
Morton Herskowitz, em aula na NYU em 1976, complementou essas ideias: manter contato visual e tátil logo após o parto; não circuncidar por rotina; amamentar sob demanda, permitindo sucção livre; respeitar o desmame autônomo; oferecer variedade de alimentos sólidos e respeitar a auto-escolha; adiar o desfralde até que haja maturidade fisiológica (idealmente entre três e quatro anos); no estágio fálico (3 a 6 anos), permitir curiosidade genital e brincadeiras entre pares; em todas as fases, permitir expressão de raiva, tristeza ou ódio, sem que isso implique ferir outras pessoas.
O pressuposto energético é claro: ao satisfazer impulsos naturais, o sistema nervoso não precisa desenvolver drives secundários destrutivos. Cuidar do que é básico não é mimar, mas promover autonomia e contentamento.
Contexto histórico
A autorregulação surgiu como antídoto ao autoritarismo rígido da era vitoriana. Décadas depois, voltou-se também contra o polo oposto: a permissividade excessiva.
Neill, ao reagir a infâncias marcadas por rigidez, deu espaço ao autogoverno discente e permitiu descargas emocionais intensas como caminho para a energia criativa. Patricia Greene, por outro lado, descreveu em sua experiência escolar o efeito da permissividade: crianças ansiosas, frágeis, incapazes de sustentar a liberdade e necessitadas de uma função de sustentação (holding). Koopman, em consultório, observou algo semelhante: pais calorosos, porém omissos em contato real e em limites claros, produziam crianças egocentradas e famintas de amor.
Em síntese, a autorregulação se coloca entre dois extremos: autoritarismo e permissividade. Liberdade significa a expressão dos impulsos do núcleo. Já as expressões que vêm da couraça (ódio compulsivo, ganância, ciúme, teimosia rígida) configuram licenciosidade.
A. S. Neill e as origens dessas ideias
Embora Summerhill tenha popularizado o tema, Neill teve como precursor Homer Lane, criador do Little Commonwealth, comunidade reformatória autogerida por jovens na Inglaterra. Lane defendia estar “do lado da criança”, abolir punições, confiar no crescimento espontâneo em autogoverno e colocar os afetos acima da intelectualização.
Em 1927, Neill fundou Summerhill e, em 1937, conheceu Wilhelm Reich em Oslo. Reconheceu nele a ligação entre psique e soma e passou a estudar sua obra de perto. Dessa amizade nasceu a ponte entre liberdade educacional e autorregulação biológica.
Autorregulação em Reich
Reich ampliou a noção de liberdade para além do campo pedagógico, introduzindo a dimensão energética. Para ele, autorregulação é uma condição de caráter vinculada à genitalidade natural, expressa em abertura, espontaneidade e racionalidade.
Em 1940, criou o grupo de estudo do “bebê saudável”, voltado a observar o desenvolvimento natural desde o nascimento. Para Reich, o recém-nascido chega com um sistema energético plástico e produtivo, capaz de fazer contato e moldar seu ambiente. A tarefa da educação é remover obstáculos a essa produtividade natural.
Ele não propôs um manual, mas sim a observação clínica e empírica dos processos autorregulatórios em ação. Como afirmou em 1950: “Precisamos aprender com as crianças, não projetar nelas ideias distorcidas.”
Diretrizes práticas
Paul Martin (1942–43) sistematizou princípios de uma “pedagogia sex-econômica”, que ecoam até hoje na clínica somática: reconhecer a criança como sujeito de direitos; permitir movimentos de contato espontâneo; respeitar ritmos orgânicos como sono e alimentação; preservar o prazer corporal e a naturalidade da masturbação infantil; apoiar a exploração do mundo sem conduzir; e estabelecer limites que surjam do núcleo, protegendo sem sufocar.
Outros autores — como Ilse Ollendorff Reich, Felicia Saxe e Richard Singer — reforçaram esses pontos com estudos de caso e aplicações práticas em família, escola e clínica.
Do excesso de liberdade à licenciosidade
Com as mudanças culturais dos anos 1960, muitos interpretaram de forma superficial as ideias de Reich e Neill, confundindo liberdade com caos permissivo. Educadores como Patricia Greene e Richard Blasband insistiram que a criança só pode receber tanta liberdade quanto sua estrutura suporta com segurança.
Koopman foi clara: as ideias de Reich seguem válidas, mas foram distorcidas. O problema não está nos princípios, mas na aplicação — marcada, muitas vezes, pela couraça dos adultos que distorce a noção de autorregulação.
Caminho de longo prazo
Para Reich, essa transformação é necessariamente geracional. À medida que mais crianças forem criadas sob princípios de autorregulação, emergirá um tecido social menos armado.
Como escreveu em 1950, não cabe aos adultos definir o futuro, mas remover os obstáculos para que as próximas gerações façam melhor.
O que virá na Parte 2
- As três vertentes principais da literatura sobre criação de filhos.
- O corpus de Reich (1927–1955) sobre infância, família, sexualidade e sociedade.
- Contribuições de Ellsworth Baker e um protocolo prático do pré-natal à adolescência.
- Estudos de caso de escolas livres e famílias autorreguladas.
- Implicações para pais e terapeutas contemporâneos.
Mensagem final da Parte 1:
Autorregulação não significa ausência de limites. Trata-se de sustentar necessidades primárias, oferecer contato real, permitir afeto autêntico e conter aquilo que fere a vida. No corpo, manifesta-se como respiração plena, pulsação energética, vitalidade sexual adequada à idade, enraizamento e capacidade de autoapaziguamento.
